Cartas à Manu: Resistência, broas e silêncios
Amada Manu
Em cada linha que escrevo, pode parecer que a todo momento falo de saudade. Aquela saudade que se revelou adiantada naquele capítulo do Calhamaço de Viagem; saudade controlada pela felicidade de te ver feliz.
Longe ou perto, o amor é algo surpreendente. Liberto de amarras, nos oferece doces frutos. O outro feliz é força descomunal para seguirmos em frente; o outro feliz é energia duradoura. A distância é simbólica, quase inexistente quando caminhamos juntos. Vejo agora, com direito a fotos, você pelas ruas de Dublin. Novos amigos. Novas paisagens, sentimentos renovados. Você no mapa do WhatsApp em tempo real. Você na busca de ser feliz. Hoje, você me disse: “É preciso enxergar fora do virtual para ver tudo.”
Estou a fazer isso. Ausentar-me de redes e bytes. Dias em que o silêncio domina a minha alma. Silêncios em todos os lugares; em casa, na rua, no trabalho. Um silêncio tão sutil e estranho que ainda não sei como explicar. Tranquilidade necessária diante da realidade tóxica que nos traz o noticiário, do que hoje vivemos por aqui. Palavras amargas, políticas envelhecidas, pessoas hipnotizadas, o passado do deus que governa as coisas da matéria, que diz o que pode ou não pode fazer, que passa verniz nos novos fariseus que estão por todas as partes em busca de vingança. Universo paralelo do obscurantismo não é força de expressão. O nada está em todos os lugares sugando as melhores intenções e um suspiro baixinho são momentos de amor e de liberdade. O silêncio é sim um recurso de resistência em um momento em que em todos lugares surgem vozes vazias de conhecimento e mesmo de lógica.
Fiquei feliz de ver você com novos amigos e amigas. Fiquei feliz em ver você novamente como DJ, agora em pub irlandês. Fiquei feliz em ver você e Brunão, com um contato maior com a natureza, com novos sentidos e percepções. Criando posts e falando de coisas que nos mantém vivos. Falando do coração, sem se preocupar com quem vai ler; a se libertar das coisas do chão, do charco. Viver é isso.
Muito se fala hoje em andarmos de mãos dadas. Acredito mais que nunca nos pequenos grupos. Em grupos afins que se organizam conforme suas crenças de amor e paz. Além de doutrinas e religiões. É pouco útil estarmos na busca de uma conexão metafísica ou espiritual se por aqui, no dia a dia, desprezarmos certas coisas como a união, a tolerância e as conquistas civilizatórias da humanidade. Ou mesmo o abraço em uma árvore ou no outro.
Penso na união de pequenos grupos; pessoas unidas que fazem leitura de livros de história, recitam poesias, escutam música, cantam, caminham, seguem, sorriem em tolerância com outras pessoas e com o mundo. Grupos que exploram as histórias mútuas, se divertem e amam, encantam com a diversidade da ternura; que praticam jogos de tabuleiro, mas também degustação de cervejas, comidinhas, café e broas. Broa é um pão de milho, centeio, ou outro tipo de farinha. Sempre como muito amor, são encontradas em casas de avós, principalmente as portuguesas e espanholas.
Amigos, silêncios, caminhadas e broas são também resistência nos dias atuais.
Fique bem, beijos do papi.
Manoel Fernandes, 55 anos, é jornalista, editor, palestrante e curador de conteúdo para empresas e organizações. Foi criador de uma das mais tradicionais revistas alternativas da internet no Brasil, a NovaE. Calhamaço de viagem é seu segundo livro. Escreveu também Entrevista de atriz, ainda não publicado.
#Papito